No
século XIV surgiu na Inglaterra um homem que devia ser considerado "A
Estrela da Manhã da Reforma Protestante". John Wycliffe (1320-31 de
dezembro 1384) foi o arauto da Reforma, não somente para Inglaterra mas para
toda a cristandade. O grande protesto contra Roma, que lhe foi dado proferir,
jamais deveria silenciar. Aquele protesto abriu a luta que deveria resultar a
emancipação de indivíduos, igrejas e nações.
Wycliffe recebeu educação
liberal, e para ele o temor do Senhor era o princípio da sabedoria. No
colégio se distinguira pela fervorosa piedade bem como pelos seus talentos e
perfeito preparo escolar. Em sua sede de saber procurava familiarizar-se com
todo ramo de conhecimento. Foi educado na filosofia escolástica, nos cânones
da Igreja e na lei civil, especialmente do seu próprio país. Em seus
trabalhos subsequentes evidencio-se o valor desses primeiros estudos. Um
conhecimento proficiente da filosofia especulativa de seu tempo, habilitou-o
a expor os erros dela; e, mediante o estudos das leis civis e eclesiásticas,
preparou-se para entrar na grande luta pela liberdade civil e religiosa. Não
só sabia manejar as armas tiradas da Palavra de Deus, mas também havia
adquirido a disciplina intelectual das escolas e compreendia a tática dos
teólogos escolásticos.
O poder de seu gênio e a
extensão e proficiência de seus conhecimento impunham o respeito de amigos
bem como de inimigos. Seus adeptos viam com satisfação que seu herói ocupava
lugar preeminente entre os espíritos dirigentes da nação; e seus inimigos
eram impedidos de lançar o desprezo à causa da Reforma, exprobrando a
ignorância ou fraqueza do que a mantinha.
Quando ainda no colégio,
Wycliffe passou a estudar as Escrituras Sagradas. Naqueles primitivos tempos
em que a Bíblia existia apenas nas línguas antigas, os eruditos habilitados a
encontrar o caminho para a fonte da verdade, o qual se achava fechado as
classes incultas. Assim já fora preparado o caminho para o trabalho futuro de
Wycliffe como Reformador.
Semelhante aos reformadores
posteriores, Wycliffe não previu, ao iniciar a sua obra, até onde ela o
levaria. Não se opôs deliberadamente a Roma. A dedicação à verdade, porém,
não poderia senão levá-lo a conflito com a falsidade. Quanto mais claramente
discernia os erros de papado, mais fervorosamente apresentava os ensinos da
Escritura Sagrada. Via que Roma abandonara a palavra de Deus pela tradição
humana; destemidamente acusava o sacerdócio de haver banido as Escrituras, e
exigia que a Bíblia fosse devolvida ao povo e de novo estabelecida sua
autoridade na Igreja. Wycliffe era ensinador hábil e ardoroso, eloquente
pregador, e sua vida diária era uma demostração das verdades que pregava.
O conhecimento das Escrituras,
a força de seu raciocínio, a pureza de sua vida e sua coragem e integridade
inflexíveis conquistaram geral estima e confiança. Muitas pessoas se haviam
tornado descontentes com sua fé anterior, ao verem a iniquidade na Igreja de
Roma, e saldaram com incontida alegria as verdades expostas por Wycliffe; mas
os dirigentes papais encheram-se de raiva quando perceberam que ente
reformador conquistava maior influência que a deles mesmos.
Wycliffe começou a escrever e
publicar folhetos contra os frades, porém não tanto procurando entrar em
discussão com eles como despertando o espírito do povo aos ensinos da Bíblia
e seu Autor. Ele declarava que o poder do perdão o excomunhão não possuía o
papa em maior grau do que os sacerdotes comuns, e que ninguém pode ser
verdadeiramente excomungado a menos que primeiro haja trazido sobre si a
condenação de Deus. De nenhuma outra maneira mais eficaz poderia ele ter
empreendido a demolição da gigantesca estrutura de domínio espiritual e
temporal que o papa erigira, e em que alma e corpo de milhões se achavam
retidos em cativeiro.
De novo foi Wycliffe chamado
para defender os direitos da coroa inglesa contra as usurpações de Roma; e.
sendo designado embaixador real, passou dois anos na Holanda, em conferência
com os emissários de papa. Ali entrou em contato com eclesiásticos da França,
Itália e Espanha, e teve oportunidade de devassar os bastidores, e
informar-se de muitos fatos que lhe teriam permanecido em oculto na
Inglaterra. Aprendeu muitas coisas que o orientariam em seus trabalhos
posteriores. Naqueles representantes da corte papal lia ele o verdadeiro
caráter e objetivos da hierarquia. Voltou para Inglaterra a fim de repetir
mais abertamente e com maior zelo seus ensinos anteriores, declarando que a
cobiça, o orgulho e o engano eram os deuses de Roma.
Os trovões papais logo se
desencadearam contra ele. Três bulas foram expedidas para a Inglaterra : para
universidade, para o rei e para os prelados, ordenando todas as medidas
imediatas e decisivas para fazer silenciar o ensino de heresias. Antes da
chegada das bulas, porém, os bispos em seu zelo, intimaram Wycliffe a
comparecer perante eles para o julgamento. Entretanto, dois dos mais poderosos
príncipes do reino o acompanharam ao tribunal; e o povo, rodeando o edifício
e invadindo-o, intimidou de tal maneira os juízes que o processo foi
temporariamente suspenso, sendo-lhe permitido ir-se em paz. Um pouco mais
tarde faleceu Eduardo III, a quem em sua idade avançada os prelados estavam
procurando influenciar contra o reformador, e o anterior protetor de Wycliffe
tornou-se regente do reino.
Mas a chegada das bulas papais
trazia para toda a Inglaterra a ordem peremptória de prisão e o encarceramento
do herege. Estas medidas indicavam de maneira direta a fogueira. Parecia
certo que Wycliffe logo deveria cair vítima da vingança de Roma. Mas aquele
que declarou outra outrora para alguém: "Não temas... Eu sou teu
escudo" (Gn 15:1), de novo estendeu a mão para proteger seu servo. A
morte veio, não para o reformador, mas para o pontífice que lhe decretara
destruição. Gregório XI morreu, e dispersaram-se os eclesiásticos que se
haviam reunidos para o processo de Wycliffe.
A providência de Deus encaminhou
ainda mais os acontecimentos para dar ainda mais oportunidade ao
desenvolvimento da Reforma. A morte de Gregório foi seguida da eleição de
dois papas rivais. Dois poderes em conflito, cada um se dizendo infalível,
exigiam agora obediência. Cada qual apelava para os fiéis afim de o ajudarem
a fazer guerra contra o outro, encarecendo suas exigências com terríveis
anátemas contra os adversários e promessas de recompensas no Céu aos que o
apoiavam. Esta ocorrência encareceu grandemente o poderio do papado. Crimes e
escândalos inundavam a igreja. Nesse ínterim, o reformador, no silencioso
retiro de sua paróquia de Luttreworth, estava trabalhando diligentemente
para, dos papas contendores, dirigir os homens a Jesus, o Príncipe da paz.
Wycliffe, a exemplo de seu
Mestre, pregou o evangelho aos pobres. Não contente com só espalhar a luz nos
lares humildes em sua paróquia de Lutterworth, concluiu que ela deveria ser
levada a todas as pastes da Inglaterra. Para realizar isso organizou um corpo
de pregadores, homens simples e dedicados, que amavam a verdade e nada
desejavam tanto como o propagá-la. Estes homens iam por toda parte, ensinando
nas praças, nas ruas das grandes cidades e nos atalhos do interior.
Como professor de teologia em
Oxford, Wycliffe pregou a Palavra de Deus nos salões da universidade. Tão
fielmente apresentava ele a verdade aos estudantes sob sua instrução, que
recebeu o título de "Doutor do Evangelho". Mas a maior obra de sua
vida deveria ser a tradução das Escrituras para a língua inglesa. Num livro,
exprimiu a intenção de traduzir a Bíblia, de maneira que todos na Inglaterra
pudessem ler, na língua materna, as maravilhosas obras de Deus.
Subitamente, porém,
interromperam-se as suas atividades. Posto que não tivesse ainda sessenta
anos de idade, o trabalho incessante, o estudo e os assaltos dos inimigos
haviam posto à prova suas forças, tornando prematuramente velho. Foi atacado
de perigosa enfermidade. A notícia disto proporcionou grande alegria aos
frades. Pensavam então que se arrependeria amargamente do mal que tinha feito
à Igreja e precipitaram a seu quarto para ouvir-lhe a confissão.
Representantes das quatro
ordens religiosas, com quatro oficias civis, reuniram-se ao redor do suposto
moribundo. "Tendes a morte em vossos lábios, diziam"; comovei-vos
com as vossas faltas, e retratai em nossa presença tudo o que dissestes para
ofensa nossa", continuavam. O reformador ouviu em silêncio; mandou então
seu assistente levantá-lo no leito e, olhando fixamente para eles enquanto
permaneciam esperando a retratação, naquela voz firme e forte que tantas
vezes os haviam foito tremer, disse: "Não hei de morrer, mas viver, e
novamente denunciar as más ações dos frades". Espantados e confundidos,
saíram os monges apresadamente do quarto. Cumpriram-se as palavras de
Wycliffe. Viveu a fim de colocar nas mão de seus compatriotas a mais poderosa
de todas as armas contra Roma, isto é, dar-lhes a Escritura Sagrada, o meio
de indicado pelo Céu para libertar, esclarecer e evangelizar o povo.
Conclui-se, por fim, o
trabalho: a primeira tradução inglesa que já se fizera da Escritura Sagrada.
A palavra de Deus estava aberta para a Inglaterra. O reformador não temia
agora prisão ou fogueira, Colocara nas mãos do povo inglês uma luz que jamais
se extinguiria. Dando a seus compatriotas, fizera mais no sentido de quebrar
os grilhões da ignorância e do vício, mais para libertar e enobrecer seu
país, do que já se conseguira pelas mais brilhantes vitórias nos campos de
batalha.
Novamente os chefes papais
conspiraram para fazer silenciar a voz do reformador. Perante três tribunais
foi ele sucessivamente chamado a juízo, mas sem proveito. Primeiramente um
sínodo de bispos declarou heréticos os seus escritos e, ganhando o jovem rei
Ricardo II para seu lado, obtiveram um decreto real sentenciando à prisão
todos os que professassem as doutrinas condenadas. Wycliffe apelou para o
parlamento, que despertado pelos seus estímulos, repeliu o edito perseguidor.
Porém , pela terceira vez foi chamado a julgamento, e agora perante o mais
elevado tribunal eclesiástico do reino. Mas Wycliffe, não se retratou.
Destemidamente sustentou seus ensino e repeliu as acusações de seus
perseguidores. Sentiu-se o poder do Espirito Santo na sala do concílio. Os
ouvintes ficaram como que fascinados. Pareciam como que não haver forças para
deixar o local. Como setas da aljava do Senhor, as palavras do reformador
penetravam-lhes a alma. Assim sendo, retirou-se da assembleia e nenhum do
seus adversários tentou impedi-lo.
A obra de Wycliffe estava quase
terminada; a bandeira da verdade que durante tanto tempo empunhara, logo lhe
deveria cair da mão; mas, uma vez mais, deveria ele dar testemunho do
evangelho. A verdade devia ser proclamada do próprio reduto do reino do erro.
Wycliffe foi chamado a julgamento perante o tribunal papal de Roma, o qual
tantas vezes derramara o sangue dos santos. Não ignorava o perigo que o
ameaçava; contudo, teria atendido à chamada se um ataque de paralisia lhe não
houvesse tornado impossível efetuar a viagem. Mas, se bem que sua voz não
devesse ser ouvida em Roma, poderia falar por carta, e isto se decidiu a
fazer. De sua reitoria o reformador escreveu uma carta que, conquanto
respeitosa nas expressões e cristã no espírito, era incisiva censura à pompa
e orgulho da sé papal. Wycliffe esperava plenamente que sua vida seria o
preço de sua fidelidade. O rei, o papa e os bispos estavam reunidos para
levá-lo a ruína, e parecia certo que, quando muito, em alguns poucos meses o
levariam à fogueira.
Mas Deus, em sua providência,
ainda escudou a seu servo. O homem que durante toda a vida permanecera
ousadamente na defesa da verde, diariamente em perigo de vida, não deveria
cair vítima do ódio de seus adversários. Wycliffe nunca procurara escudar-se
a si mesmo, mas o Senhor lhe fora o protetor; e agora quando seus inimigos
julgavam segura a presa, a mão de Deus o removeu para além de seu alcance. Em
sua igreja, em Lutterworth, na ocasião em que ia ministrar a comunhão, caiu
atacado de paralisia, e em pouco tempo rendeu a sua vida.
Wycliffe saíra das trevas da
Idade Média. Ninguém havia que tivesse vivido antes dele, por meio de cuja
obra pudesse modelar seu sistema de reforma. Suscitado como João Batista para
cumprir uma missão especial, foi ele o arauto de uma nova era. Contudo, no sistema
de verdade que apresentava, havia uma unidade e perfeição que os reformadores
que o seguiram não excederam e alguns não atingiram, mesmo cem anos mais
tarde. Tão amplo e profundo foi posto o fundamento, tão firme e verdadeiro
foi posto o arcabouço, que não foi necessário serem reconstruídos pelos que
depois dele vieram.
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