No cárcere, sentenciado pelo
Papa a ser queimado vivo, Jan Huss disse: "Podem matar um ganso (na sua
língua, 'huss' é ganso), mas daqui a cem anos, Deus suscitará um cisne que
não poderão queimar". Enquanto caía a neve, e o vento frio uivava como
fera em redor da casa, nasceu esse "cisne", em Eisbelen, Alemanha.
No dia seguinte, o recém-nascido era batizado na Igreja de São Pedro e São
Paulo. Sendo dia de São Martinho, recebeu o nome de Martinho Lutero (1483 -
1546).
Cento e dois anos depois de Jan
Huss expirar na fogueira, o "cisne" afixou, na porta da Igreja em
Wittenberg, as suas noventa e cinco teses contra as indulgências, ato que
gerou a Grande Reforma. Para dar o valor devido à obra de Martinho Lutero, é
necessário notar algo das trevas e confusão dos tempos em que nasceu.
Calcula-se que, pelo menos, um
milhão de albigenses foram mortos na França, a fim de cumprir a ordem do
Papa, para que esses "hereges" fossem cruelmente exterminados.
Wycliffe, "A Estrela da Alva da Reforma", traduzira a Bíblia para a
língua inglesa. Jan Huss, discípulo de Wycliffe, morrera na fogueira , na
Boêmia, cantando hinos, nas chamas, até o último suspiro. Jerônimo de Praga,
companheiro de Huss e também erudito, sofrera o mesmo suplício, pedindo ao
Senhor que perdoasse seus pecados. John Wessália, notável pregador de Erfurt,
fora preso por ensinar que a salvação é pela graça; seu frágil corpo fora
metido entre ferros, onde morreu quatro anos antes do nascimento de Lutero.
Na Itália, quinze anos depois de Lutero nascer, Savonarola, homem dedicado a
Deus e fiel pregador da Palavra, foi enforcado e seu corpo reduzido a cinzas,
por ordem da Igreja Romana.
Em tempos assim, nasceu
Martinho Lutero. Como muitos dos demais célebres entre os homens, era de
família pobre.
Os pais de Martinho, para
vestir, alimentar e educar seus sete folhos, esforçaram-se incansavelmente. O
pai trabalhava nas minas de cobre; a mãe, além do serviço doméstico, trazia
lenha nas costas, da floresta.
O pai de Martinho,
satisfeitíssimo pelos trabalhos escolares do filho, na vila onde morava,
mandou-o, aos treze anos, para a escola franciscana na cidade de Magdeburgo.
Para conseguir a sua
subsistência em Magdeburgo, Martinho era obrigado a esmolar pelas ruas,
cantando canções de porta em porta. Seus pais, achando que em Eisenach
passaria melhor, mandaram-no para estudar nessa cidade, onde moravam parentes
de sua mãe. Porém esses parentes não o auxiliaram, e o moço continuou a
mendigar o pão.
Quando estava a ponto de
abandonar os estudos, para trabalhar com as mãos, certa senhora de recursos,
D. Úrsola Cota, atraída por suas orações na igreja e comovida pela humilde
maneira de receber quaisquer restos de comida, na porta, acolheu-o entre a
família. Pela primeira vez Lutero sentira fartura. Mais tarde, ele referia-se
à cidade de Eisenach como "a cidade bem amada" . Quando Lutero se
tornou famoso, um dos filhos da família Cota cursava em Wittenberg, onde
Lutero o recebeu na sua casa.
Logo depois, os pais de
Martinho alcançaram certa abastança. O pai alugou um forno para fundição de
cobre e depois passou a possuir mais dois. Foi eleito vereador na sua cidade
e começou a fazer planos para educar seus filhos.
Aos dezoito anos, Martinho
ansiava estudar numa universidade. Seu pai, reconhecendo a idoneidade do
filho, enviou-o a Erfurt, o centro intelectual do país, onde cursavam mais de
mil estudantes. O moço estudou com tanto afinco que, no fim do terceiro
semestre, obteve o grau de bacharel de filosofia. Com a idade de vinte e um
anos, alcançou o segundo grau acadêmico e o de doutor em filosofia. Os
estudantes, professores e autoridades prestaram-lhe significativa homenagem.
Seu pai, desejoso de que seu
filho se formasse em direito e se tornasse célebre, comprou-lhe a caríssima
obra: " Corpus Juris " . Mas a alma de Lutero suspirava por Deus,
acima de todas as coisas. Vários acontecimentos influenciaram-no a entrar na
vida monástica, passo que entristeceu profundamente seu pai e horrorizou seus
companheiros de universidade.
Durante o ano de noviciato,
antes de Lutero ser feito monge, os seus amigos fizeram de tudo para
dissuadi-lo de confirmar esse passo. Os companheiros, que convidara para
cearem com ele, quando anunciou a sua intenção de ser monge, ficaram no portão
do convento dois dias, esperando que ele voltasse. Seu pai, vendo que seus
rogos eram inúteis e que todos os seus anelantes planos acerca do filho iam
fracassar, quase enlouqueceu.
Quão grande, porém, era sua
ilusão. Depois de procurar crucificar a carne pelos jejuns prolongados, pelas
privações mais severas, e com vigílias sem conta, achou que, embora
encarcerado em sua cela, tinha ainda de lutar contra os maus pensamentos. A
sua alma clamava: "Dá-me santidade ou morro por toda a eternidade; leva-me
ao rio de água pura e não a estes mananciais de águas poluídas; traze-me as
águas da vida que saem do trono de Deus!".
Certo dia Lutero achou, na
biblioteca do convento, uma velha Bíblia latina, presa à mesa por uma cadeia.
Achara, enfim, um tesouro infinitamente maior que todos os tesouros
literários do convento. Ficou tão embevecido que, durante semanas inteiras,
deixou de repetir as orações diurnas da ordem. Então, despertado pelas vozes
da sua consciência, arrependeu-se da sua negligência : era tanto o remorso,
que não podia dormir. Apressou-se a reparar o seu erro: fê-lo com tanto
anseio que não se lembrava mais de alimentar-se. Nessa altura, o vigário
geral da ordem agostiniana, Staupitz, visitou o convento. Era homem de grande
discernimento, e devoção enraizada; compreendeu logo o problema do jovem
monge; ofereceu-lhe uma Bíblia na qual Lutero leu que o " justo viverá
da fé ". Por quanto tempo tinha ele anelado : " Oh! se Deus me
desse um livro destes só para mim ! " - e agora o possuía!
Na leitura da Bíblia achou
grande consolação, mas a obra não poderia completar-se em um só dia. Ficou
mais determinado do que nunca a alcançar paz para a sua alma, na vida
monástica, jejuando e passando noites a fio sem dormir. Gravemente enfermo,
exclamou : " Os meus pecados ! Os meus pecados ! " Apesar da sua
vida ter sido livre de manchas, como ele afirmava e outros testificavam,
sentia sua culpa perante Deus, até que um velho monge lhe lembrou uma palavra
do Credo: " Creio na remissão dos pecados " . Viu então que Deus
não somente perdoara os pecados de Daniel e de Simão Pedro, mas também os
seus. Pouco tempo depois destes acontecimentos, Lutero foi ordenado padre.
Depois de completar vinte e
cinco anos de idade, Lutero foi nomeado para a cadeira de filosofia em Wittenberg,
para onde se mudou para viver no convento da sua ordem. Porém a sua alma
anelava pela Palavra de Deus, e pelo conhecimento de Cristo. No meio das
ocupações de professorado, dedicou-se ao estudo das Escrituras, e no primeiro
ano conquistou o grau de " Baccalaureus Ad Biblia ". Sua alma ardia
com o fogo dos céus; de todas as partes acorriam multidões para ouvir os seus
discursos, os quais fluíam abundantemente e vivamente do seu coração, sobre
as maravilhosas verdades reveladas nas Escrituras.
Um dos pontos mais iluminantes
da biografia de Lutero é a sua visita a Roma. Surgiu uma disputa renhida
entre sete conventos dos agostinianos e decidiram deixar os pontos de
dissidências para o Papa resolver. Lutero sendo o homem mais hábil, mais
eloquente e altamente apreciado e respeitado por todos que o conheciam, foi
escolhido para representar seu convento em Roma. Fez a viagem a pé,
acompanhado de outro monge. Em Roma, visitou os vários santuários e os
lugares de peregrinação. Numa certa ocasião, subindo a Santa Escada de
joelhos, desejando a indulgência que o chefe da igreja prometia por esse ato,
ressoaram nos seus ouvidos como voz de trovão, as palavras de Deus: " O
justo viverá da fé ". Lutero ergueu-se e saiu envergonhado.
Depois da corrupção
generalizada que viu em Roma, a sua alma aderiu à Bíblia mais do que nunca.
Ao chegar novamente ao convento, o vigário insistiu em que desse os passos
necessários para obter o título de doutor, com o qual teria o direito de
pregar. Lutero, porém, reconhecendo a grande responsabilidade perante Deus e
não querendo ceder, disse: " Não é de pouca importância que o homem fale
em lugar de Deus....Ah ! Sr. Dr., fazendo isto, me tirais a vida; não
resistirei mais que três meses ". O vigário geral respondeu-lhe : "
Seja assim, em nome de Deus, pois o Senhor Deus também necessita nos céus de
homens dedicados e hábeis".
O coração de Lutero, elevado à
dignidade de doutor em teologia, abrasava-se ainda mais do desejo de conhecer
as Sagradas Escrituras e foi nomeado pregador da cidade de Wittenberg.
Acerca da grande transformação
da sua vida, nesse tempo, ele mesmo escreve: " Apesar de viver
irrepreensivelmente, como monge, a consciência perturbada me mostrava que era
pecador perante Deus. Assim odiava a um Deus justo, que castiga os pecadores...Senti-me
ferido de consciência, revoltado intimamente, contudo voltava sempre para o
mesmo versículo (Rm 1:17), porque queria saber o que Paulo ensinava. Contudo,
depois de meditar sobre esse ponto durante muitos dias e noites, Deus, na sua
graça, me mostrou a palavra : 'O justo viverá da fé'. Vi então que a justiça
de Deus, nessa passagem, é a justiça que o homem piedoso recebe de Deus pela
fé, como dádiva".
A alma de Lutero dessa forma
saiu da escravidão; ele mesmo escreveu assim: "Então me achei
recém-nascido e no Paraíso. Todas as escrituras tinham para mim outro
aspecto; perscrutava-as para ver tudo o que ensinavam sobre a 'justiça de
Deus'. Antes, estas palavras eram-me detestáveis; agora as recebo com o mais
intenso amor. A passagem me servia como a porta do Paraíso".
Depois dessa experiência,
pregava diariamente; em certas ocasiões, pregava até três vezes ao dia,
conforme ele mesmo conta : "O que o pasto é para o rebanho, a casa para
o homem, o ninho para o passarinho, a penha para a cabra montês, o arroio
para o peixe, a Bíblia é para as almas fiéis". A luz do Evangelho, por
fim, tomara o lugar das trevas e a alma de Lutero abrasava por conduzir os
seus ouvintes ao Cordeiro de Deus, que tira todo o pecado.
Lutero levou o povo a
considerar a verdadeira religião, não como uma mera profissão, ou sistema de
doutrinas, mas como vida em Deus. A oração não era mais um exercício sem
sentido, mas o contato do coração com Deus que cuida de nós com um amor
indizível. Nos seus sermões, Deus revelou o seu próprio coração a milhares de
ouvintes, por meio do coração de Lutero.
A fama do jovem monge
espalhou-se até longe. Entretanto, sem o reconhecer, enquanto trabalhava
incansavelmente para a igreja, já havia deixado o rumo liberal que ela seguia
em doutrinas e práticas.
"Em outubro de 1517,
Lutero afixou a porta da Igreja do Castelo em Wittenberg, as suas 95 teses, o
teor das quais é que Cristo requer o arrependimento e a tristeza pelo pecado
e não a penitência". Lutero afixou as teses ou proposições para um
debate público, na porta da Igreja, como era costume nesse tempo. Mas as
teses, escritas em latim, foram logo traduzidas em alemão, holandês e
espanhol. Antes de decorrido um mês, para a surpresa de Lutero, já estavam na
Itália, fazendo estremecer os alicerces do velho edifício de Roma. Foi desse
ato de afixar as 95 teses na Igreja de Wittenberg, que nasceu a Reforma
Protestante, isto é, que tomou forma o grande movimento de almas que em todo
o mundo ansiavam voltar para a fonte pura, a Palavra de Deus. Contudo Lutero
não atacara a Igreja Romana, mas antes, pensou fazer defesa do Papa contra os
vendedores de indulgências.
Em agosto de 1518, Lutero foi
chamado a Roma para responder a uma denúncia de heresia. Contudo, o eleitor
Frederico não consentiu que fosse levado para fora do país; assim Lutero foi
intimado a apresentar-se em Augsburgo. "Eles te queimarão vivo",
insistiram seus amigos. Lutero, porém, respondeu resolutamente: "Se Deus
sustenta a causa, ela será sustentada".
A ordem do núncio do Papa em Augsburgo
foi: "Retrata-se ou não voltará daqui". Contudo Lutero conseguiu
fugir, passando por uma pequena cancela no muro da cidade, na escuridão da
noite. Ao chegar de novo em Wittenberg, um ano depois de afixar as teses, era
o homem mais popular em toda a Alemanha. Não havia jornais nesse tempo, mas
fluíam da pena de Lutero respostas a todos os seus críticos para serem
publicadas em folhetos. O que escreveu dessa forma, hoje seriam cem volumes.
Quando a bula de excomunhão,
enviada pelo Papa, chegou em Wittenberg, Lutero respondeu com um tratado
dirigido ao Papa Leão X, exortando-o, no nome do Senhor, a que se
arrependesse. A bula do Papa foi queimada fora do muro da cidade de
Wittenberg, perante grande ajuntamento do povo.
Porém, o imperador Carlos V,
que ia convocar sua primeira Dieta na cidade de Worms, queria que Lutero
comparecesse para responder, pessoalmente, aos seus acusadores. Os amigos de
Lutero insistiram em que recusasse ir.
- "Não fora Jan Huss
entregue a Roma para ser queimado, apesar da garantia de vida por parte do
imperador?!".
Mas em resposta a todos que se
esforçavam por dissuadi-lo de comparecer perante seus terríveis inimigos,
Lutero, fiél a chamada de Deus, respondeu: "Ainda que haja em Worms,
tantos demônios como quantas sejam as telhas nos telhados, confiando em Deus,
eu aí entrarei". Depois de dar ordens acerca do trabalho, no caso de ele
não voltar, partiu.
Na sua viagem para Worms, o
povo afluía em massa para ver o grande homem que teve coragem de desafiar a
autoridade do Papa. Em Mora, pregou ao ar livre, porque as igrejas não mais
comportavam as multidões que queriam ouvir seus sermões. Ao avistar as torres
das igrejas de Worms, levantou-se na carroça em que viajava e cantou o seu
hino, o mais formoso da Reforma: "Ein Feste Berg", isto é:
"Castelo forte é o nosso Deus". Ao entrar, por fim, na cidade,
estava acompanhado de uma multidão de povo muito maior do que fora ao
encontro de Carlos V. No dia seguinte foi levado perante o imperador, ao lado
do qual se achavam o delegado do Papa, seis eleitores do império, vinte e
cinco duques, oito margraves, trinta cardeais e bispos, sete embaixadores, os
deputados de dez cidades e grande número de príncipes, condes e barões.
Sabendo que tinha de comparecer
perante uma das mais imponentes assembleias de autoridades religiosas e civis
de todos os tempos, Lutero passou a noite anterior de vigília. Prostrado com
o rosto em terra, lutando com Deus, chorando e suplicando.
Quando, na assembleia, o núncio
do Papa exigiu de Lutero, perante a augusta assembleia, que se retratasse,
ele respondeu: "Se não me refutardes pelo testemunho das Escrituras, ou
por argumentos - desde que não creio somente nos papas e nos concílios, por
ser evidente que já muitas vezes se enganaram e se contradisseram uns aos
outros - a minha consciência tem de ficar submissa à Palavra de Deus. Não
posso retratar-me, nem me retratarei de qualquer coisa, pois não é justo nem
seguro agir contra a consciência. Deus me ajude! Amém".
Apesar de os papistas não
conseguirem influenciar o imperador a violar o salvo-conduto, para que
pudesse queimar na fogueira o assim chamado "herege", Lutero teve
de enfrentar outro grave problema. O edito de excomunhão entraria
imediatamente em vigor; Lutero por causa da excomunhão, era criminoso e, ao
findar o prazo do seu salvo-conduto, devia ser entregue ao imperador; todos
os seus livros deviam ser apreendidos e queimados; o ato de ajudá-lo em
qualquer maneira era crime capital.
Mas para Deus é fácil cuidar
dos seus filhos. Lutero, regressando a Wittenberg, foi repentinamente rodeado
num bosque por um bando de cavaleiros mascarados que, depois de despedirem as
pessoas que o acompanhavam, conduziram-no, alta noite, ao castelo de
Wartburgo, perto de Eisenach. Isto foi um estratagema do príncipe de Saxônia
para salvar Lutero dos inimigos que planejavam assassiná-lo antes de chegar a
casa. No castelo, Lutero passou muitos meses disfarçado; tomou o nome de
cavaleiro Jorge e o mundo o considerava morto. Contudo, no seu retiro, livre
dos inimigos, foi-lhe concedido a liberdade de escrever, e o mundo logo
soube, pela grande quantidade de literatura, que essa obra saía da sua pena e
que, de fato, Lutero vivia.
O reformador conhecia bem o
hebraico e o grego e em três meses tinha vertido todo o Novo Testamento para
o alemão - em poucos meses mais a obra estava impressa e nas mãos do povo.
Cem mil exemplares foram vendidos, em quarenta anos, além das cinquenta e
duas edições impressas em outras cidades. Era circulação imensa para aquele
tempo, mas Lutero não aceitou um centavo de direitos. A maior obra de toda a
sua vida, sem dúvida, fora de dar ao povo alemão a Bíblia na sua própria
língua - depois de voltar a Wittenberg. O seu êxito em traduzir as Sagradas
Escrituras para o uso dos mais humildes, verifica-se no fato de que, depois
de quatro séculos, sua tradução permanece como a principal.
Depois de abandonar o hábito de
monge, Lutero resolveu deixar por completo a vida monástica, casando-se com
Catarina Von Bora, freira que também saíra do claustro, por ver que tal vida
é contra a vontade de Deus. O vulto de Lutero sentado ao lume, com a esposa e
seis filhos que amava ternamente, inspira os homens mais que o grande herói
ao apresentar-se perante o legado em Augsburgo.
Nas suas meditações sobre as
Escrituras, muitas vezes se esquecia das refeições. Ao escrever o comentário
sobre o Salmo 23, passou três dias no quarto comendo somente pão e sal.
Quando a esposa chamou um serralheiro e quebraram a fechadura, acharam-no
escrevendo, mergulhado em pensamentos e esquecido de tudo em redor.
É difícil concebermos a
magnitude das coisas que devemos atualmente a Martinho Lutero. O grande passo
que deu para que o povo ficasse livre para servir a Deus, como Ele mesmo
ensina, está além da nossa compreensão. Era grande músico e escreveu alguns
dos hinos mais espirituais cantados atualmente. Compilou o primeiro hinário e
inaugurou o costume de todos os assistentes aos cultos cantarem juntos.
Insistiu em que não somente os do sexo masculino, mas também os do feminino
fossem instruídos, tornando-se, assim, o pai das escolas públicas. Antes
dele, o sermão nos cultos era de pouca importância. Mas Lutero fez do sermão
a parte principal do culto. Ele mesmo servia de exemplo para acentuar esse
costume: era pregador de grande porte. Considerava-se como sendo nada; a
mensagem saía-lhe do íntimo do coração: o povo sentia a presença de Deus. Em
Zwiekau pregou a um auditório de 25 mil pessoas na praça pública.
Calcula-se que escreveu 180
volumes na língua materna e quase um número igual no latim. Apesar de sofre
de várias doenças, sempre se esforçava dizendo : "Se eu morrer na cama
será uma vergonha para o Papa":
Os homens geralmente querem
atribuir o grande êxito de Lutero à sua extraordinária inteligência e aos
seus destacados dons. O fato é que Lutero também tinha o costume de orar
horas a fio. Dizia que se não passasse duas horas de manhã orando, recearia
que Satanás ganhasse a vitória sobre ele durante o dia. Certo biógrafo seu
escreveu : "O tempo que ele passa em oração, produz o tempo para tudo
que faz. O tempo que passa com a Palavra vivificante enche o coração até
transbordar em sermões, correspondência e ensinamentos".
Encontra-se o seguinte na
História da Igreja Cristã, por Souer, Vol, 3, pág. 406 : "Martinho
Lutero profetizava, evangelizava, falava línguas e interpretava; revestido de
todos os dons do Espírito".
Nos seus sessenta e dois anos
pregou seu último sermão sobre o texto: "Ocultaste estas coisas aos
sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos". No mesmo dia
escreveu para a sua querida Catarina: "Lança o teu cuidado sobre o
Senhor, e Ele te susterá. Amém". Isso foi na última carta que escreveu.
Vivia sempre esperando que o Papa conseguisse executar a repetida ameaça de
queimá-lo vivo. Contudo não era essa a vontade de Deus: Cristo o chamou
enquanto sofria dum ataque do coração, em Eisleben, cidade onde nascera.
São estas as últimas palavras
de Lutero: "Vou render o espírito". Então louvou a Deus em alta
voz: "Oh! meu Pai celeste! meu Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
em quem creio e a quem preguei e confessei, amei e louvei! Oh! meu querido
Senhor Jesus Cristo, encomendo-te a minha pobre alma. Oh! meu Pai celeste! Em
breve tenho de deixar este corpo, mas sei que ficarei eternamente contigo e
que ninguém me pode arrebatar das tuas mãos". Então, depois de recitar
Jo 3:16 três vezes, repetiu as palavras: "Pai, em tuas mãos entrego o
meu espírito, pois tu me resgataste, Deus fiel". Assim fechou os olhos e
adormeceu.
Um imenso cortejo de crentes
que o amavam ardentemente, com cinquenta cavaleiros à frente, saiu de
Eisleben para Wittenberg; passando pela porta da cidade onde o reformador
queimara a bula de excomunhão, entrou pelas portas da Igreja onde, há vinte e
nove anos, afixara suas 95 teses. No culto fúnebre, Bugenhangen, o pastor, e
Melancton, inseparável companheiro de Lutero, discursaram. Depois abriram a
sepultura, preparada ao lado do púlpito, e ali depositaram o corpo.
Quatorze anos depois, o corpo
de Melancton achou descanso do outro lado do púlpito. Em redor dos dois,
jazem os restos mortais de mais de noventa mestres da universidade.
As portas da Igreja do Castelo,
destruídas pelo fogo no bombardeio de Wittenberg em 1760, foram substituídas
por portas de bronze em 1812, nas quais estão gravadas as 95 teses. Contudo,
este homem que perseverou em oração, deixou gravadas, não no metal que
perece, mas em centenas de milhões de almas imortais, a Palavra de Deus que
dará fruto para toda a eternidade.
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